quinta-feira, 5 de julho de 2007

Sistema Oligárquico e Regime Democrático ( V )




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do Sistema e do Regime…
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"Toda ideia nova nasce apesar da evidência"
Gaston Bachelard (1884-1962)

A perspectiva conceptual do que nos rodeia repousa sobre a nossa utilização da linguagem, pois ela constitui o nosso horizonte de compreensão, ou melhor dizendo, a nossa estrutura de compreensão, actuante como uma tarefa prática sobre a interpretação de dados históricos sobre os quais devemos ser plenamente conscientes, pois "a História é portadora de sentido" (Hans-Georg Gadamer :1900-2002).

Empregamos frequentemente o vocábulo "política" com um criterio orgânico que provém em linha directa de Aristóteles e da sua concepção organizativa da "polis", noção que se foi "sedimentando" através dos Impérios centralizadores, reforçada pela "Ordenança de Villers-Cotterêts", emitida pelo rei francês François I, no século XVI, e que institui desde França um primeiro conceito de Estado-Nação, reforçando a "imagem" de uma dependência "Política-Estado".

"A nossa dependência do mundo das imagens é mais forte, mais constitutiva do nosso "ser", que a nossa dependência do mundo das ideias", escrevia Gaston Bachelard (1884-1962) no "Adormecido desperto".

Com efeito, a "imagem" da política como acto de Estado impôs-se à "ideia" (conceito adequado) de "política" como facto social, assumindo-se a "política" como acto independente do "facto social" e impondo-se a este a partir de uma estrutura de "regime" denominada Estado.
Esta inversão de valores, retirando ao acto político a sua iminente dependência do facto social, resultou na perversão da governabilidade como componente do facto social, transformando-a em dirigibilidade como acto de Estado.

O facto social desenvolve-se segundo três critérios (Durkheim 1885-1917), generalidade, exterioridade e coercitividade, e o governo do povo que constituia a "polis" (conjunto urbano e rural) realizava-se por inerência, de que eram encarregues os melhores ("aristos"), os quais, em momentos de perigo para a comunidade ("exempli gratia", uma ameaça externa, ou uma crise social), nomeavam um responsável pela aplicação de normas de excepção.

Essa função está na origem da posterior formação do sistema político denominado monarquia (do gr. "monos", único e "archein", comandar - "comando num só") chefiado por um monarca ("Basileus") que se fará rodear de apoiantes denominados "nobres".
Se a "aristocracia" se fundamentava nos "melhores" ("aristos"), a "monarquia" baseava-se naqueles ("nobres") em quem confiava o monarca, que lhes atribuia, e a si mesmo, um poder hereditário.
Em Atenas, onde o monarca habitava um local designado "Stoa Basileos", a "monarquia" foi abolida nos principios do século VII EP, mas manteve-se noutras "polis" e no decorrer da História europeia foi largamente utilizado, embora já como "sistema político", apoiando regimes diversos, desde o absolutismo ao parlamentarismo.

Regressando à analise da "monarquia", verificamos que esta se converte em "tirania" (de "turannos", um termo provavelmente originário da Anatólia) sempre que a função de "basileos" ("rex" em latim) é assumida peremptoriamente.
Em Atenas, Dracon, Sólon e Clístenes (que evidenciou a "demos" "kratia") foram "tiranos", termo que não era sinónimo de violência nem de crueldade, mas que designava um "chefe absoluto". Pittacos de Mitelene e Periandro de Corintio foram tiranos, o que não impediu de serem nomeados entre os "sete sábios" da Antiguidade.
Como curiosidade, citamos o facto de, em Atenas, no final da guerra do Peloponeso (404 EP), ter existido um efémero (oito meses…) governo constituido por trinta magistrados ("hoi Triakonta"), designados como tiranos, e que ficou conhecido como o governo dos "Trinta Tiranos".
A organização política de Esparta, com dois reis que, mutuamente, podiam anular as decisões, evitou-lhe a experiência dos tiranos, o que não significa a ausência de abusos de poder.

A esse tipo de "regime", denominaram os romanos "ditadura" (etimologicamente, "ditador" é "aquele que fala"), e que designava na época da República uma magistratura excepcional que atribuia grandes poderes a um só homem, embora condicionados por legislação e limitados no tempo (seis meses no máximo).
Lucius Cornelius Sulla (Sylla) Felix (138-78 EP), foi ditador e renunciou voluntariamente ao cargo, regressando à vida privada.
(nota: Sulla era a tradução latina do nome grego Sylla, pois em grego clássico antigo "y" ("ipsilon") pronunciava-se como o "u" francês ou o "ü" em alemão. Em grego moderno pronuncia-se como "i".)

Abrimos um pequeno parêntesis para relembrar que um "sistema político" é uma organização política composta por três estruturas :
- estrutura ideológica : "regime político" que formata o Estado (poderes executivo ; legislativo e judicial).
- estrutura financeira e económica.
- estrutura social : saúde ; educação ; obras públicas…

Tenhamos presente de que é no contexto do "sistema político" que se desenvolve e determina a "ideologia" do poder político, sendo o "regime político" o processo utilizado na aplicação dessa ideología através de uma instituição, mais ou menos complexa, mais ou menos aparente, que denominamos Estado, definido como organização política e jurídica de uma sociedade, mas na realidade um conceito tão variável que determina desde a "polis" da Antiguidade grega, o "L'État c'est moi…" de Luis XIV no século XVII, ou os omnipresentes Estados "fascista" e "comunista-marxista", do século XX (o Estado-Nação).
A noção de Estado, para o qual Georg Simmel (1858-1918) ressalta as singularidades, é na Antiguidade uma noção difusa, e foi Maquiavel que objectivamente a utilizou sob a forma vocabular de "stato", termo que Arendt (1906-1975) origina no latim "status rei publicae" (equivalente a "forma de governo").

Ainda com referência a "ideología", mais importante hoje do que há 50 anos, apesar do "sistema politico" actual pretender o contrário, o termo, designando o estudo das ideias e a sua relação com os símbolos que as expressam, foi forjado por Destutt de Tracy em 1796 ("Mémoire sur la faculté de penser"), que o compôs a partir do latim "idea" ("ideia") e do grego "logos" ("razão", "discurso") ; um vocábulo compósito, já que em grego "eidós" ("forma", "ideia" em Platão) exprime mais o sentido de "imagem".

Vários pensadores gregos, como Platão, Aristóteles ou Políbio enunciaram os vários tipos de organização que podem apresentar as formas políticas de governo.
Salientemos que não faziam distinção entre "sistema político" e "regime político", apresentando-os na totalidade sob esta última designação. "Insignes" teorizadores continuam, conscientemente ou não, e com rigor relativo, a amalgamar "sistema político" com "regime político", porém, o que se pode compreender na época dos pensadores citados, parece-nos menos entendível no presente, exceptuando os casos daqueles que por razões de interesse político pretendem que, e.g. a "democracia", seja considerada um "sistema político" !

Platão coloca ênfase na qualidade dos "regimes" e na sucessão lógica, que não histórica, dos mesmos.
"Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou que aqueles hoje denominados reis e soberanos não sejam verdadeira e seriamente filósofos ; enquanto o poder político e a filosofia não se encontrarem no mesmo individuo ; (…) não haverá fim, meu caro Glauco, aos males das cidades, nem, me parece, aos do género humano (…)"
(Platão - República, V, 474 a)

Desde o "filósofo-rei" (não "rei-filósofo" como alguns referem), que detém nas suas mãos o conhecimento e o poder e que representa um ideal, uma "perfeição política", Platão cita a "timocracia" (fundamentada na honra), a "oligarquia" (poder dos ricos), a "democracia" (regime demagogicamente igualitário) e, como consequência, a "tirania" (fundamentada nos desejos do tirano).
Esta classificação é, obviamente, subjectiva !

Para Aristóteles os "regimes", numa primeira aproximação a "sistema político", são classificados segundo uma perspectiva quantitativa (número de titulares que detêm o poder), enunciando a "monarquia" (poder centrado num individuo), a "aristocracia" (poder de um grupo) e "república" (controlo do poder nas mãos do conjunto de cidadãos).
Desde estes "regimes" ("sistemas"), considerados justos pela sua "utilidade pública", podem gerar-se situações injustas de "interesses particulares", tais como a "tirania", a "oligarquia" ou a "democracia", formas preversas de, respectivamente, a "monarquia", a "aristocracia" e a "república".

O historiador Polibio (210-126 EP) aplica ao destino dos "politeiai" ("politeia", conjunto de cidadãos e normas de governo) a noção de "anaciclose" (do gr. "an-", de novo e "cyclose", movimento), que na astrologia/astronomia da época pretendia significar um ciclo completo, com retorno das esferas celestes (posição dos astros vistos desde a Terra) à situação inicial.
Políbio designava umas formas de governo que se sucediam até que, a partir de uma delas, se voltava à forma inicial. Um movimento constante, ciclico, não fixo no mesmo plano como um circulo, mas sim em espiral, "dialéctico" em linguagem filosófica.
A tipologia de governos, numa "anaciclose" de seis fases, iniciava-se com a "monarquia" que degenerava em "tirania", substituida pela "aristocracia" que se degrada em "oligarquia". Esta recorre à "democracia" que conduz o governo à pior das situações, a "oclocracia".
O "regime" seguinte será a recuperação através de um homem providencial, que restaura a "monarquia" e… inicia um novo ciclo.
Curioso notar a distinção feita por Polibio entre "democracia" ("poder do povo") e "oclocracia" ("poder da multidão").

Todos eles (Platão, Aristóteles e Políbio) concordam num aspecto: a "democracia" é das piores (senão a pior) formas de governo, não porque (teoricamente) pretende incluir o povo na governação, mas porque, através dos políticos profissionais, usa a demagogia para o enganar e, assim, preservar o controlo do poder do "sistema político", seja ele uma aristocracia, uma monarquia ou uma república (oligarquia).

A democracia" é pois um "regime político" perverso (demagogo) utilizado por várias tipologias de "sistema político" para preservar o poder, entretenendo os povos com "pão e circo" (Juvenal) e manipulando-os até os converter num amálgama de "servos voluntários" (Etienne de La Boétie).

2 comentários:

PintoRibeiro disse...

Abraço, bom domingo,
( excelente... ).

António Lugano disse...

ao "pintoribeiro"
Grato e...
também um abraço.